quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

No tempo em que aceitávamos as delícias preparadas










I



Teu prazer me entendia, trazia-me paz

Na colheita anual de 73, perdemos a inocência, fez-se trégua

Éramos fortes, avançávamos em nome da existência fugaz

Degustávamos tintos secos com procedência

Amávamo-nos entre estranhos, sob o sol, entregamo-nos em essência



II



Como fidalgos, sentávamos à mesa com decência

Entreolhando-nos, aceitávamos as delícias preparadas

Tudo nela nos pertencia, as provávamos e sorríamos

Bebíamos o sangue, a carne fria e as iguarias, comíamos

Espalhávamos discursos que uma palavra esgotar-nos-ia

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

No bar do Joaquim, com amigos beberiquei






I



Visitei a velha cidade empoeirada

Não era a mesma, abstraíra-se de mim

Cães famintos, transeuntes insanos, pedintes profanos




II



Todos me rodeavam, falastrões chafurdavam

Copo, deste lado, o término nunca existiu, enfim

Brindemos amigos, no bar do Joaquim!














*Homenagem aos amigos de boteco

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Fiz a lição, mas não houve correção





Bati à porta do professor
E não me cansei de esperar, aguardei
Logo ele me atenderá, afirmei



Levantei cedo, em tempo?, atrasei!
Partiu antes, dobrou a esquina, densa neblina
Aquela lição ficou sem correção

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Ponto de mutação (1992)







“Quando as portas da percepção forem abertas

veremos as coisas como elas realmente são: infinitas.”

(W. Blake)




  • Direção: Bernt Capra
  • Baseado em livro de Fritjof Capra (1982)
  • Personagens: Uma cientista, um político (candidato a presidência dos EUA) e um poeta escritor.

Encontro das personagens: Monte São Michel, França (analogia do lugar escolhido com o pensamento do Século XVII).

Idéias, reflexões e proposições marcam os diálogos.

A personagem cientista é representada por uma mulher que passa por uma crise de identidade profissional, visto que suas experiências foram utilizadas para fins não pacíficos.


O político enfrenta conflitos pessoais por não ter sido eleito presidente dos EUA e, decide visitar o amigo poeta para, quem sabe, redescobrir o caminho do sucesso pessoal e profissional.


O poeta é platônico e possui uma visão holística do mundo. Procura em seus pontos de vista ser antagônico ao pensamento do político.

Ao se encontrarem, a cientista e o poeta, ambos ganham força e seus questionamentos junto ao político o fazem despertar para uma nova visão do mundo que herdaram e vivem.


Há possibilidade de ruptura do pensamento cartesiano, nesses diálogos entre as personagens, então, supõe-se que o paradigma dominante está sendo revisto e questionado.

Houve o período de apogeu e glória desta linha de ensino-aprendizagem e atualmente ela é nada mais que uma representação do passado incorporado no presente.


A visão contemporânea aperfeiçoada tende a romper com o pensamento medieval imposto a mais de trezentos anos.

Esse embrião do novo paradigma deve gerar novos meios e novos caminhos para a sociedade contemporânea, unindo conhecimento científico com experiência política e conhecimento empírico (como uma forma de visão platônica do mundo atual e futuro).

Então, unindo o conhecimento científico com o conhecimento empírico chegaremos a esse novo paradigma proposto.

Devemos manter uma tênue relação entre todos os elementos do Universo, analisar “O Todo” como um grande contexto a ser abordado agora e nas gerações futuras.

As questões do mundo intuitivo passam a ser uma necessidade atual, enquanto as questões mensuráveis pela ciência passam a ser o “velho paradigma”. Mas, ambas devem estar em harmonia plena.


No seu livro, Fritjof Capra questiona o papel do Homem como detentor das ciências e deixa claro que tudo é passível de análise e que há várias formas de entendimento e interpretação e que nem todos entendem a mesma coisa sobre determinado assunto ou teoria.


Como formadores de opinião conscientes do papel exercido para a formação de novas gerações de pensadores devemos nutrir debates, questionar, indagar e analisar as teorias antes de aceita-las plenamente.

Também devemos saber que o que não conseguimos explicar é devido somente à falta de conhecimento que temos sobre aquele determinado assunto.


No modelo Cartesiano de educação, fragmentamos os conteúdos e fragmentamos o conhecimento.

Há, portanto, uma especialização dos saberes em detrimento do conhecimento como um todo.

O discente aprende de forma isolada sem conseguir gerar uma ramificação das relações, das causas e dos efeitos das matérias estudadas.

Deveríamos ser educados para estarmos preparados e em equilibro para, antes de aceitarmos opiniões impostas, buscarmos entendê-las no contexto em que foram criadas e citadas.

Esse, portanto seria nosso “Ponto de mutação”.


A evolução de nossa visão holística sobre os seres, as filosofias e as coisas.

Agir de forma passiva e sem atitude diante de impasses ideológicos, didáticos, políticos ou educacionais, também não é a solução para os problemas que nos circundam.

O modelo da “indiferença plena” deve ser descartado.

Todavia, a busca incessante do conhecimento holístico como embasamento entre todos os elementos que regem o Universo, torna-se imprescindível para formação das novas sociedades.

Também deveríamos estar aptos a explanar nossas idéias de forma coerente clara e enfática e não-fundamentalista, sendo flexíveis quando a situação exigir esse comportamento.

A busca constante do conhecimento, ampliando os limites cognitivos de quem aprende como aluno sedento por conhecimento e de educador, apto a facilitar os mecanismos de ensino-aprendizagem.


A nossa mutação evolutiva formará um novo Homem, num novo planeta auto-sustentável.

Deste modo, cria-se uma interação mútua geradora de benefício a todos, trazendo crescimento cognitivo causador de produtividade dentro do contexto escolar e acadêmico, consequentemente, entendendo-se ao contexto social e político.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Quando me deparei com aquela tempestade em janeiro





A voz da tempestade, em meus ouvidos, ecoou:
Sem acepção, os bons e os maus temerão os dias vindouros!
Ao longe pude ouvi-la e agora, rapidamente se aproximou
Diante desse sonho, desfez-se a nebulosidade nos meus olhos


Quem se alegrará na alvorada?
Resta-me um verso, raio de lucidez na calçada alagada
Não molhe nossas bibliotecas, nossas roupas no varal
Purifique nossos ares, preserve nossos livros, nossas fotografias, nossos filhos


Acene-me, com ramos e ventos suaves, ao final
Vi um menino deslizar pela enxurrada...
... Sem rastro, como a noite negra que passou
Em seu tecido encharcado e gasto, reparava-me


À minha frente, sua face pálida me fitou
Nunca mais me esqueci daqueles olhos desconcertantes
Porque aquele olhar refletido n' água precipitada


Ah meu Deus, fez-me chorar!
Era negro e profundo...
... Era o meu, a me questionar

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Há três dias a chuva cai e você está vivo







Não sou conselheiro

Nem escravo do dinheiro

Mas, se puder ouvir, vou lhe dizer:

É divertido estar vivo! Pode crer!



É sedutor flertar com o fogo

Mas, o que alimenta as chamas?

Os corpos?

Meu ego, seus dramas?



Isso então me mostra como é perigoso amadurecer

Serve-me como lição

Mantendo-se fiel aos princípios

Sendo prudente, sem perder a razão



Vou queimar-me sem parar, para todo sempre

E sempre, numa visão romanceada da verdade

De que é melhor

Estar vivo do que morto



Absorto, vejo um pássaro amarelo
Que canta e voa sem preocupação

Eu, incomodado, em minha casa atrás da janela

Ouço a chuva há três dias

E o pássaro, indiferente, voa e canta sob ela

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Miguelópolis Revisited




Há tempos perdemos a intimidade
Dessa cidade, conheço as ruas a dedo
Carrego comigo, seus medos, seu pó nas narinas
E da infância, reminiscências e alvitres nas retinas

Sinto falta da bicicleta, do Rio Grande, da bola e do rolimã
Do campinho do Sílvio, da Cohab, da casa 115
Frutas da época: carambola, goiaba vermelha, manga e romã
Saí muito jovem, ainda tinha a mente sã

A Matriz está lá, as velhas e seus escapulários
Defronte ao Bar do Joaquim, sem as árvores, o Santuário
Sua fonte e nos seus bancos ainda sentam corruptos e salafrários
Onde os jovens se encontram e verbalizam sem horário nem dicionário

O Estádio Waldemar de Freitas e suas falhas na grama
A esquina da Nenê não tem mais o pé de boldo nem a roseira
Poucos amigos restaram, besteira
Sou saudosista, que pieguice
Na Socremi, encontrava-me com a Inês, a Fernanda e a Clarisse

Passando pelas ruas retas e largas, olho para o céu a caminho da Marcenaria do Miguel
Ainda desvio dos ciclistas, dos cachorros e das carroças vou escapando
Logo ali, depois da Radio Vale, pelo Cartório do Sr Didi, passo acenando
Lá, algumas coisas nunca mudam, de rostos e lugares vou lembrando...
A loja da Dona Célia, a sorveteria do Florisvaldo, a Casa São José e o Bar do Zé Fernando

Estão todos imunes ao tempo, para minha saudade contemplar
Amigos de infância, fatos, mitos e insights em reentrâncias
Em verdade, com sinceridade, escute-me, vou falar:
Tenho corpo e labor em outro lugar
Mas, foi lá que meu coração nunca deixou de habitar

domingo, 8 de novembro de 2009

Zé-do-Burro, o pagador de promessas




Vi tudo de longe, pela grande tela

Zé-do-Burro, faca em punho, avança pelas escadas velhas

Pelo sacro-dever, o padre o impede, a promessa não se cumprirá

O delegado antecipa-o, quem lhe desafiará?

O povo lhe defende, surge uma onda humana

Na confusão ouviu-se um tiro, uma consternação

No meio da multidão, olhei para o lado, doía-me o coração

Estouro de boiada, corre-corre, dispersão

Na porta da igreja escolhida, Zé-do-Burro, jaz ao chão

Rosa grita, um choro em explosão

Lá vem o padre, sinal da cruz

Encomenda da alma do pobre moribundo sertanejo

Rosa o afasta, com olhar de desprezo

O Mestre Coca, capoeirista, faz gesto preciso aos companheiros

Inclinam-se sobre o corpo estendido na ladeira

Fixam-no na cruz da promessa vã

Numa nobre homenagem derradeira

Carregam-no assim, como um crucificado

O padre recua sobre os degraus ensanguentados

Avançam-no, pela entrada principal

Arrombam a porta, dirigem-se ao altar, numa entrada triunfal

Termina a peregrinação, cumpre-se a promessa ao burro Nicolau



*O Pagador de Promessas é um filme brasileiro de 1962, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, dirigido por Anselmo Duarte (Salto, 21 de abril de 1920 - São Paulo, 7 de novembro de 2009), baseado na peça teatral de Dias Gomes.

*A Anselmo Duarte e sua obra-prima, minha homenagem póstuma em forma de prosa-poética.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss, não entristeça nossos trópicos



As alianças são mais importantes

Para a estrutura social

Que laços de sangue seletos?

Culturas são como sistemas de signos

São partilhados e estruturados por finos princípios

Que estabelecem o funcionamento do intelecto


Existem regras estruturantes

Sobre as culturas, na mente humana

E estas regras raízes

Constroem pares de oposição

Organizam todo o sentido, corrigem a direção

Aprendi isso, num livro de viagem

Repleto de passagens duras

Onde o Lévi-Strauss fez investigações puras


Interessado pelas filosóficas e verdes paragens

Com o único objetivo do conhecimento pleno, das linguagens

Indagações pessoais desse paladino estrangeiro

Antropólogo que aqui veio, sorrateiro

Sobre o status de mestre

Analisou nossas tribos, nossa cultura em formação

Fotografou a urbanidade de São Paulo em construção

Entre o Velho e o Novo Mundo, uma lágrima no coração

Concepções de progresso e de civilização

Nessas plagas, tristes trópicos, nosso povo em expansão





*Claude Lévi-Strauss (Bruxelas, 28 de novembro de 1908 - Paris, 31 de outubro de 2009)



domingo, 1 de novembro de 2009

Sobre a “Felicidade clandestina” de Clarice Lispector





A personagem central desse conto de Clarice Lispector, narra uma história que ocorreu em sua infância em Recife, Pernambuco.


Era amante da leitura desde tenra idade.

Mas, a situação financeira de sua família impedia-lhe de comprar os livros que desejavas.


Havia, outra garota, descrita como: baixa, gorda, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, que possuía o que uma criança devoradora de livros mais sonhava: seu pai era dono de uma livraria.

Todavia, a colega não valorizava o hábito da leitura e, pior, sentia-se inferior às outras coleguinhas de escola e bairro, sobretudo à narradora.


Certo dia, a filha do comerciante de livros, com enorme talento para a crueldade, informou à jovem que possuía um exemplar de Monteiro Lobato: O clássico: “As Reinações de Narizinho”.

A protagonista, então, passou a confabular consigo, imaginando-o em seus braços, o toque e o folhear das páginas, viver com ele, comê-lo e dormir ao seu lado.

Mas, ele estava muito acima de suas posses.


- É só pegá-lo em casa, te empresto, afirmava num cinismo juvenil, chupando balas fazendo barulho.


A jovem passou, a sonhar com a real possibilidade de tê-lo, mesmo que brevemente, por meio de um empréstimo.

Envolta em enorme ingenuidade, a menina rotineiramente passava na casa e o livro sempre estava indisponível, sob a alegação de que a garota chegara atrasada ou passara em hora errada e já havia emprestado-o a outra garota.


E esse suplício durou um bom tempo.

Até que, certo dia, a mãe da cruel colega, achando estranho aquelas visitas constantes em sua casa, interveio na conversa das duas e percebeu a atitude sádica da filha.


Houve uma “confusão silenciosa”; a mãe, estarrecida, descobriu a filha que tinha.

Uma jovem com perversidade em potencial.

Refazendo-se do choque, ordenou a filha que buscasse o exemplar de Lobato que nunca saíra de lá.

Sem pestanejar, num ato de corrigir um erro moral familiar, emprestou o livro à garota sonhadora.

E disse que seria: - Pelo tempo que desejasse.


A jovem, de súbito, passa a nutrir uma “felicidade clandestina” nunca antes provada ou sentida.

Tendo-o em posse, fez questão de esquecê-lo.

Chegando em casa, foi se alimentar, usava o tempo, ignorava-o.

Fingia que não o tinha.

Criava a “surpresa” de achá-lo, para que a tal, felicidade clandestina se eternizasse continuadamente durante o arrastar dos ponteiros.

Aquele gesto lhe trazia orgulho e pudor.

Às vezes, sentava-se na rede com ele no colo, abrindo-o e abstendo-se de tocá-lo.

Sentia êxtase puro.

Não era mais uma menina com um livro, era uma mulher com seu amante.





*Lispector, Clarice “Felicidade Clandestina” Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves 1996

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Os versos mentem, os olhos acreditam e o coração sente


*Hoje, 20 de outubro, comemora-se o Dia do poeta.

Presto minha homenagem a todos que se sentem nessa condição.




Para cada ser solitário

Uma solidão única

Para cada verso

Interpretações abundam


Felizmente

Refletidos nas retinas

O poeta, infeliz, os mente

Mente uma angústia pressentida


Dou-te meus versos, aprecie-os

Mostre-os a quem quiser vê-los

Faça-os e entrega-os de novo

A outros tantos olhos nus


Acenda a baixa luz

Dê-me as relíquias

Desça ao porão

Enquanto todos dormem

Quantas mãos o tocarão?

domingo, 11 de outubro de 2009

Sobre: “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector






Clarice Lispector transmite ao leitor de “A Paixão segundo G.H.” romance existencialista publicado pela primeira vez em 1964, as intranquilidades espirituais e os dilemas emocionais da personagem G.H.

A primeira vista, uma mulher discernida e bem sucedida na profissão e nas relações sociais, mas que anseia encontrar a auto-identidade e, nas profundezas de seu apartamento classe média-alta carioca, parte em busca do conhecimento interior.

Vagando só em seu recolhimento urbano, chega ao pequeno quarto da empregada, que naquele dia, se encontrava “quase vazio”.


Depara-se diante de uma repugnante e nojenta barata.

Uma observa a outra, G.H. observa a outra e a si.

Desencadeia-se, de súbito, em G.H., toda uma sequência de fatos conexos, levando-a à refletir sobre o sentido de sua existência e dos seres ao seu redor.

A sua pior descoberta experimenta diante da barata viva:


"A de que o mundo não é humano. E ninguém é humano o bastante".


Esse “fluxo de consciência” é a essência que dá forma ao romance introspectivo, criado por Clarice.

À medida que surgem, na cabeça da personagem, os pensamentos são materializados numa escrita baseada no estudo da consciência, uma viagem ao âmago, que traz à tona a plena crise individual de uma senhora de meia-idade.

Não há uma estória com inicio, meio e fim.

A narrativa se inicia num momento qualquer, enquanto a personagem, numa aflição subentendida, tecla compulsivamente várias vezes uma letra em sua máquina de escrever.

A atmosfera de instabilidade emocional retratada nas páginas do romance é o grande atrativo da obra.

Ele dever ser sentido. Não há como lê-lo.


As aflições devem ser perspicazmente percebidas pelo leitor a cada virada de página.

De seu apartamento, ultimo andar de um edifício de 13; G.H., depara-se com a corrosiva rotina e resolve então, adentrar-se ao quarto da empregada que acabara de demitir.

Há meses não ia até aquele pequeno cômodo serviçal.


Eis que, ao “invadi-lo”, também se “invade”.

E nessa, “incursão à alma” vê-se num enorme vazio interior.

Avista uma solitária barata deixando o armário e tem-se então, um momento de manifestação dos sentidos primitivos, imaginando ser necessário “voltar às origens” para resgatar a felicidade plena, sem vícios ou cinismos.


Deveria interagir, tocar e provar a barata para irromper sua solidão mascarada, seu mundo alienado e asséptico e assim, re-descobrir sozinha, o caminho.

O caminho através da náusea.

O momento que antecede a “revelação da busca interior” traz náusea violenta do enorme fardo de angustia que se instalara na mente da personagem.

A dolorosa sensação da fragilidade da condição humana, a dúvida e a incerteza das escolhas e dos caminhos percorridos e a percorrer, de certa forma, geram no leitor o desenvolvimento do senso crítico e os modos de aceitar suas falhas e dominar seus medos e incertezas quanto à sombra do passado escurecendo o futuro.

E, só assim, surge a “epifania”, o regozijo pleno da revelação.

"(...) porque não és nem frio nem quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca, era Apocalipse Segundo São João, e a frase que devia se referir a outras coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo da memória...”

*Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920.

Morreu no Rio de Janeiro, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário.

domingo, 4 de outubro de 2009

Sobre a obra máxima de Cervantes














O livro Dom Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), iniciado em 1602, pode ser considerada a melhor literatura de ficção de todos os tempos.


Composta de 126 capítulos de loucuras, amizades, sabedoria e encantamentos, são divididas em duas partes: a primeira surgida em 1605 e a outra em 1615.

A obra se baseia numa sátira às histórias de cavaleiros, muito em voga naqueles tempos.


Dom Quixote, depois de uma caçada, sentiu-se extremamente fadigado e moribundo.

Clama por ajuda e é atendido rapidamente.

Levam-no ao seu leito.

O cavaleiro, de súbito, percebe a presença da morte.

Magérrimo por toda sua existência terrena, sempre dispôs de saúde suficiente para aventurar-se pelo mundo quando bem entendera.

Vivia junto a agregados num brejo seco em La Mancha e passara seus dias inúteis lendo os feitos dos heróis de cavalaria.

Venerava-os e os tinha como ídolos e exemplos de vida profícua.


Mas um dia, de tanta leitura, seus miolos se entupiram.

Afinal, muitas lendas povoavam sua mente senil.

Um médico foi chamado e a recomendação foi à busca da salvação da alma, porque o corpo iria sucumbir brevemente.


A personagem, Amadis de Gaula, o espadachim fantástico, até então idolatrado por Quixote, passou a ser por ele odiado.

Coisas estranhas aconteciam na mente daquele enfermo homem.

Mas, num lapso de serenidade pôs-se a esperar pela morte.

Queria se livrar dos fantasmas literários que nutriam seus pensamentos doentios.

Subitamente algo ocorreu...


Com berros enfáticos, o velho Dom Quixote disse ter restaurado plenamente o juízo, livrara-se das malditas leituras que fizera sobre os feitos dos cavaleiros por toda sua vida e ordenou que pusessem uma sela em seu ordinário cavalo, Rocinante, calçou suas velhas botas e armou-se como seus antepassados: um escudo enferrujado e uma lança torta e, num ímpeto, partiu em busca de aventuras em terras castelhanas que lhe trouxessem renome e glória.

Suas andanças foram ricas em intempéries e impasses fortuitos.

Fantasiou o amor por uma dama ilusória, Dulcinéia Del Tomboso, e nutriu amizade fraterna com o camponês gorducho Sancho Pança.


“Esta que vês de rosto amondongado,

Alta de peitos, e ademã brioso

É Dulcinéia, rainha Del Tomboso,

De quem esteve o grão Quixote enamorado...” (pag. 339)


Sua grande frustração era com sua contemporaneidade.

Dizia que a invenção da pólvora estragou tudo.

Acabou-se com os nobres cavaleiros, que, ao ouvirem um disparo, fugiam rapidamente com suas lanças a balançar para o horizonte.

Em seu livro, Cervantes usa um pragmatismo crítico, do escudeiro que revela um conhecimento do mundo distante dos questionamentos e indagações do cavaleiro sobre a existência terrena, a morte e os dogmas sagrados.

Ambos carregam consigo, um conhecimento filosófico empírico e juntos esses conhecimentos se interagem e se completam.


“Tiram as almas dos eixos, as grandes forças do amor, são os cuidados do ócio, seu instrumento melhor.” (pag. 551)


Com uma visão cética, porém concisa, o escudeiro não procura respostas, já as tem pela experiência de vida.

Domina o tempo e não tem medo de enfrentar a tão temida morte.

Sancho Pança sabe transitar entre o mundo da taverna, das brigas, da morte e das agruras mundanas, sublimada empiricamente e recheada de filosofia existencialista em que se encontra o romântico cavaleiro.


"(...) Aqui jaz quem teve a sorte

De ser tão valente e forte

Que o seu cantor alegrou

Que a morte não triunfou..."

(pag.677)



*Meu exemplar: Editora Nova Cultural, São Paulo: 2002

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sobre um "Encontro Marcado" com Fernando Sabino



Fernando Sabino presenteou seus leitores em 1956 com a publicação do que é considerada sua obra prima, o romance intitulado: “O encontro marcado”.


Uma narrativa urbana que nos faz caminhar pelas ruas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro em meados do século XX, conhecendo seus moradores célebres, anônimos e os que, de alguma forma, marcaram essas cidades.


A repercussão do romance foi a melhor possível, tornando-se o livro preferido de muitos brasileiros que, nas aflições da juventude, liam e se identificavam com os dramas existenciais narrados de forma perspicaz pelo escritor mineiro. Desde aquela época, até os dias de hoje.


“O encontro marcado” é um típico romance de geração, e basicamente gira em torno dos problemas juvenis de suas personagens: os amores, o álcool, os dramas, a faculdade, escolha da profissão, a saída da casa dos pais e a mudança para a metrópole, a capital federal, na época, o Rio de Janeiro.


Vivenciado na década de quarenta, tem como protagonista Eduardo Marciano, alter ego do escritor.

Seus comparsas de toda vida: Hugo e Mauro correspondem a Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, respectivamente.

Antonieta, filha do ministro, namorada e posteriormente esposa de Eduardo, é Helena Valladares.

Toledo, um dos personagens mais importantes da história, “guia intelectual” de Eduardo por longo período é Guilhermino César.


A ênfase da narrativa parte do pressuposto que, a procura intensa do sentido da vida por Eduardo Marciano trilha um caminho incerto, transitando pelas inquietações ideológicas e políticas para as ansiedades características dos jovens da época.

Essa busca da satisfação sexual plena, da felicidade, da auto-afirmação por meio da escrita e do esporte, no caso a natação, e pela enorme ânsia de encontrar respostas sobre a existência de Deus geram um enredo que envolve o leitor do início ao final da obra.


Todos esses elementos se tornam a marca registrada da personagem até as últimas páginas do romance e constata-se, mesmo diante de expectativas e experiências mal resolvidas, a contínua busca pessoal com o auxílio de amigos, livros, amantes e garçons, e conclui-se que, o sofrimento sempre lhe trouxe aprimoramento e ponderação e, por conseguinte, lhe abriu novas perspectivas e novos entendimentos gradativamente, em relação aos valores humanos e suas relações superficiais ou aprofundadas.


Suas experiências amorosas e profissionais sempre lhe causaram excitação e entusiasmo, num primeiro momento, mas às dúvidas e a rotina lhe trouxeram decepções constantes.

Optou então, em seguir a carreira única de escritor.


O ponto alto da personagem é esse empenho em desafios constantes e um inconformismo inerente ao ser: Eduardo Marciano/Fernando Sabino, que se confundem e se unem nas linhas da narrativa.

A obra ganhou edições no exterior, e foi adaptada para o teatro.