segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ah! Os relógios...



Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidos
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...

*Mario Quintana: extraído de: "A Cor do Invisível"

Néscio, eu?



"...penso, logo desejo
Desejo, logo sinto
Sinto, logo faço
Faço, logo existo"













Cogito, ergum sum.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Sobre nós, vulcões incandescentes



Não farei versos a ti
Óh, mulher amada
Falarei, então, sobre nós
Nossa vida delicada


Tiro da memória
Momentos, histórias
Pensamentos vão e vem
Percebo como faze-me bem


Somos como nascentes
Ou vulcões incandescentes
Histórias de fadas, surrealidade...
... Fugimos da realidade


Nunca descobrirei seu segredo, resigno
Distante, perceberás em desatino
O paraíso torna-se fatal
No cotidiano de um casal


Embora não haja poeta sem dor
Em nossa paixão não há rancor
Amo-te em decência
Quero-te em potência


Nosso caso é admirável
Em transcendência inefável
Exprimo, assim meu sentimento
Num poema, como alento



A
Tais GSM
Amor vincit omnia.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Lavater, o filósofo bibliômano







"... Deus preserva aqueles a quem ama da leituras inúteis."




(Lavater, filósofo do mundo antigo que amou a humanidade mais do que todos os magistrados de sua época)

terça-feira, 23 de junho de 2009

A Bob Dylan



Os tempos...
Os tempos estão mudando
Picasso do rock, poeta do folk
Figura adversa
Você sintoniza
E não se dispersa
Entra num universo
A cada frase na mesma canção

Sem lar
Sozinho na estrada, desilusão
Como vagabundos
Uma banda eletrificada
No palco extasiada
Falando de intempéries, amores, deslocamentos
Poeta atemporal influenciou gerações,
Suas dores, angústias, sentimentos

E você
Não entende, alheio a tudo?
Não tem nada a dizer?
Mesmo que o mundo
Esteja noutro rumo
Você saberá
Quando partir, o que fazer?
Qual atitude tecer?
Deixe rolar...
"... Like a rolling stone"

terça-feira, 9 de junho de 2009

Sobre os livros



"Sempre imaginei o paraíso
Como uma grande biblioteca."
(Jorge Luis Borges)



Livros não são objetos sem vida.
Eles contém uma espécie de "chama" que impele o intelecto a novos horizontes trazendo potencia ao pensamento.
Preservam idéias e ideais de toda uma civilização ou cultura.

Sou convencido de sua vivacidade toda vez que manuseio algum.
Quem tira a vida do Homem, mata a racionalidade feita a imagem de Deus.
Mas quem destrói um livro, destrói a própria razão, a semelhança de Deus.

Um livro fundamental é como o sangue precioso de um espírito superior que conserva a vida para além da vida.


*Em estado de reflexão

Você tem meta?


Certa vez, afirmou Kierkegaard:
"A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás;
mas só pode ser vivida olhando-se para frente".
O discernimento gera a compreensão das coisas e dos seres.
A sabedoria promove a execução das metas a serem alcançadas.
Você tem alguma meta?
A vida está pulsando bem a nossa frente.
Consegue senti-la?
Direcione seus caminhos para a busca da realização pessoal.
Descubra o que te atrai, o que te satisfaz, o que o torna verdadeiramente realizado.
Saiba que a felicidade não está nas coisas, nos objetos que pode comprar, nem mesmo em seu semelhante.
A felicidade plena está dentro de cada um de nós.
E a sabedoria e o discernimento são, juntos, o mapa para chegar a esse grandioso tesouro que, um dia, poderás encontrar.
Assim como o pescador sai em busca do peixe e quando encontra-o regojiza-se, saiamos todos na busca do nosso objetivo individual.
E quando encontrá-lo, perceberás que o mais gratificante foi o caminho percorrido.
Atingir a meta é apenas a concretização da proposta.
A verdadeira satisfação está no que você fez para alcança-la.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O portão e a ferrugem



Estava à minha frente, estático, friamente inanimado, ele: o portão.
Não era, ele, o principal meio de se adentrar ao ambiente, todavia era o portão.

Mais simbólico que utilizável, de pouca eficácia, tinha papel e função tanto quanto secundária, preso ao muro da parte oposta da casa na qual vivo e convivo.

Agora, numa noite amena, estupefato, aprecio pela janela, ele, o portão.
Metálico, com uma essência intríseca, como se originasse e representasse uma fortaleza, lá permanecia ele.
- Que fazes aí portão?
- Qual a sua verdadeira finalidade?
- Seria imprescindível sua presença nesse local, óh miserável e solitário portão?
Tudo isso me faz refletir se realmente necessitamos de certas peculiaridades para nosso bom convívio e funcionalidade em algum ambiente específico.
Seria eu, na vida, assim como o portão?
Qual minha verdadeira e real funcionalidade?
Tenho realmente necessidade de ser útil, sou útil pela natureza inerente ao meu ser ou simplesmente pela minha existência humana, quero e devo, me tornar útil?

Mas, útil a que?
Útil a quem?
A mim mesmo, aos seres ou ao planeta?
Quantas perguntas brotam de minha mente entorpecida por oxigênio sujo.
Quantas dúvidas emanam dentro de minha consciência corrompida e já não pudica em sua essência.
É como se as conscupisciências terrenas tivessem me degenerado, como a ferrugem degenera o metal do portão, sem que o mesmo tome alguma atitude por si.
Apenas observa e sente.

A ferrugem manifestada só poderá ser interrompida se algum ser ou substância atuar de forma direta no combate a oxidação que se prolifera vagarosamente e contínua, como um câncer atua no âmago dos corpos distraídos sem ser percebido notoriamente a tempo da busca de solução.
Ao nos darmos conta, quase sempre é tarde demais!

Estamos à mercê das intempéries do destino, da mesma forma que o portão à ferrugem?
Como poderemos, de alguma forma, alterar uma realidade que se faz presente, e nos gera incômodo, desconforto?
O que poderá fazer um portão diante de algo terrivelmente corrosivo à sua estrutura metálica?
E nós mortais efêmeros diante da imensidão do tempo e do espaço, o que poderemos efetuar para obtenção de êxito em nossos impasses cotidianos, infortúnios, patologias?

Se a oxidação vem do oxigênio, então também enferrujamos como o portão?
Fica a pergunta no ar. Ar que respiramos.

- Pensem, óh mortais racionais, pensem.




Uma chave importante para o sucesso pessoal é a autoconfiança.

Uma chave importante para a autoconfiança é a preparação mental.

(Arthur Ashe)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Minha dica



Acostume-se a ter sempre um bom livro ao alcance dos olhos, e perceberá sua relevância.
Ele o instruirá sempre que desejar. E lhe mostrará os caminhos a serem percorridos.

Saiba escolher livros interessantes e fundamentais.
Eles sempre contribuem no benefício da humanidade.

Quem destrói livros, não destrói só a matéria, destrói a memória.
Quem ignora livros, não ignora só a matéria, ignora um patrimônio de idéias.

Tanto quanto o corpo, seu espírito também necessita de nutrientes.
Torne a leitura um hábito tão indispensável quanto a alimentação.

"Que as chamas dos livros queimados na guerra do Iraque, possam iluminar o novo milênio."

Existencialismo do dia:






O importante não é tanto o que fizeram comigo, mas o que eu faço com o que fizeram comigo.

(J.P. Sartre)

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Big Bang




Manhãs de sábado, escola Toulouse Lautrec. Começava, ao frescor dos primeiros raios solares, mais um módulo do curso de formação de professores comandado pela Mestre Rosângela Mourão.
Versada na arte de rememorar, essa artífice, conduzia com maestria nossas mentes e abria as cortinas do passado fazendo-nos viajar através de lembranças que brotavam incessantemente em cada professor que ali a observava sem pestanejar.
Dizia enfática que, o professor que somos hoje possui uma relevante relação com as situações vividas no passado, em nosso período vivido como alunos.
Marcas de um pretérito que não se finda.
Acontecimentos de outrora vivificados numa ação verbal e reflexiva, exprimindo uma reação eruptiva em minhas faculdades cognitivas.
Coloco-me a relembrar então, situações que só eu sentia e que me gerava uma prazerosa nostalgia da realidade.
Olhava aos meus companheiros de curso e percebia a sensação que todos flutuavam em deliciosos devaneios.
Reminiscências palpáveis à medida que eram instigadas mais e mais.
Num alvitre sereno, a Mestre, nos conduziu a materializarmos determinadas situações vivenciadas havia décadas, que, de certa forma, fixassem atitudes enquanto docentes contemporâneos.
Nesse momento um novo “Big Bang” ocorreu no universo.
Mas o universo em questão era minha mente.
Uma mente repleta de recordações escolares que estavam guardadas há tempos, intocadas, arrumadas como roupas dobradas em gavetas, prontas para serem remexidas e usadas.
Relembrava fatos que nem lembrava que estavam guardados tão bem.
Parecia que, um dia, o baú seria aberto, só precisava das combinações do segredo.
E a combinação se fez diante de meus olhos, de minha percepção, vendo aquela jovem senhora explanar sua tese e nos delinear caminhos a serem percorridos.
Disse certa vez Willian Blake:
“Quando as portas da percepção forem abertas, veremos as coisas como elas realmente são: infinitas”.
Naquela manhã, minha maneira de ver, compreender e interpretar meus discentes foi acometida por um salto qualitativo.
Tudo o que vivi como aluno procurava remeter a eles.
Situações de risco, de exposição, de alegrias e auto-afirmação, intempéries do cotidiano, prazeres inéditos, impasses administrativos, tudo saltava em minha mente como pipocas estourando numa panela escaldante.
Logo me pus a escrever minhas narrativas que hoje compõem esse blog.
Uma lembrança remetia a outra e mais outra e assim, a construção obteve forma, a forma sentido e o sentido de tudo isso é obter um contentamento que transforme a práxis educativa do ato de lecionar num encontro entre passado e presente, entre o que fiz e o que faço, o que vivi e o que me deixaram viver com o que vivenciarei junto com meus alunos.
Como, de certa maneira, transformaremos nossa realidade juntos, cresceremos juntos e juntos praticaremos o princípio que rege o prazer da busca e a real possibilidade de encontrá-la?
A reflexão se faz necessária à medida que necessitamos evoluir nessa nobre arte de lecionar, criar sem cessar novos formadores de opinião, promover subsídios para que novos talentos surjam e surgindo formem outros novos numa ciranda interminável e sublime.
Se for tempo de plantar, então professores, plantemos!!!
Far-se-á, a colheita, pela própria sociedade.


Unindo letras, criando frases







Lembro-me com riqueza de detalhes. Está tudo aqui, em minhas lembranças, e agora tentarei exprimí-las nessa lacônica narrativa.
Digo lacônica pois tentarei ser sucinto, conciso; todavia não gostaria de deixar escapar fatos que enriquecessem minha história de evolução cognitiva. Vamos tentar...
Era um dia belo, estava eu em companhia da tia Raquel, professora do primário da escola estadual Maria Peralta Cunha.
Considero-me uma pessoa de sorte, pois sou de uma família de professoras, várias tias professoras.
A tia Raquel, disse-me:
- Quer aprender a ler?
- Claro! Respondi.
Naquela tarde nublada, minha visão se abriu. Estava entrando num universo maravilhoso do qual nunca mais saí.
Minha madrinha, Ivone, era licenciada em História e Geografia e também lecionava no colégio estadual da cidade. Possuía uma estante recheada de livros, quase todos de sua área de atuação.
Naquela tarde, casa da madrinha, a tia professora Raquel, então, utilizou um livro de geografia que estava ao alcance de sua mão para me iniciar na leitura.
Foi fantástico. Aprendi rapidamente a decifrar aqueles símbolos e lembro-me de estar falando em alta e ressonante voz algumas palavras. Lembro-me de estar dizendo:
- Roma. – Manila. – Recife.
Parecia tão fácil.
Nunca tive dificuldade na leitura, e sempre tive muita curiosidade literária. Ficava horas em frente aquela estante da madrinha Ivone admirando os mapas-múndi, os mapas do Brasil, recortando-os e colando-os novamente, lendo os nomes dos países que existiam até então e suas capitais. Aprendi e decorei várias e até hoje sei que a capital de Honduras é Tegucigalpa.
Gostar de ler é um dom, e recebi esse presente divino antes mesmo de entrar na escola. Havia cinco anos que eu estava interagindo com o mundo e aprendi a ler numa tarde apenas, amparado por uma jovem tia que utilizava livros de geografia para executar seu propósito comigo.
Tudo pareceu muito simples, era só unir as consoantes com as vogais, as vezes vogais com vogais, as vezes duas consoantes antes de uma vogal e construía-se algo pronto para ser lido.
As frases vieram numa outra tarde, desta vez ensolarada.

Não sei como me lembro desses detalhes. Mas lembro-me de tantos detalhes de minha infância que esses que narro não me espantam.

São apenas complementos de tantos outros que se mantém vivos aqui em minha mente.

Chegando no universo escolar



Creio que era o primeiro dia de aula, talvez o segundo. Não me lembro tão nitidamente; afinal, faz-se décadas e só agora me propus a narrar esses acontecimentos de minha infância.
A mente busca; como dizia Rubem Alves: - Memória boa é a que sabe esquecer. Fica o que marcou, dissipa-se o grande volume que o cotidiano gera sem cessar.
Manhã quente como não podia deixar de ser naquela pequena cidade do interior nordeste do Estado. Clima naturalmente pacato, início de aulas, crianças em ebulição.
Íamos eu e minha mãe, mãos dadas sobre as calçadas irregulares, a brincar com latinhas, tentando chuta-las cada vez mais longe de mim, vendo papéis decifráveis ao chão, sentido a brisa matutina e o canto dos pássaros a desejar liberdade.
Ao chegar, portão de entrada, funil de crianças, minha mãe a soltar minha mão.
Foi como se meu cordão umbilical tivesse se partido naquele momento.
Estava livre, ganhava o mundo, enfrentaria novidades, o incerto, não sabia de nada, não possuía experiência para prever, não conhecia o mundo fora do alcance visual que se formava, mundo além do imaginado por aquele pequeno cérebro novel.
Chorei. Não enfrentei. Abracei o mais forte que consegui as pernas de minha mãe.
Mochila nas costas, caderno, cartilha, lápis e borracha seriam minhas armas. Acessórios vãos? Não suportei a idéia de trocar minha mãe presente por aquele lugar envolto em um grande muro alto e amarelo com umidades que escorriam por suas colunas.
Entraria numa sala recheada por objetos não familiares? Quem são todos?
Precisava adentrar? Já sabia ler, decifrar as horas do relógio de ponteiros de meu pai. Que mais me faltava?
Mamãe tentava se despedir, chegou até ali. Ponto máximo de aproximação da escola. Porque não me acompanharia no momento de maior tensão de minha vida?
Tudo o que sabia era que não queria aquela solidão coletiva.
Olhei para o lado, o Juliano chorava a olhar para sua mãe que se distanciava.

Naves e foguetes



Seu nome era Rodrigo. Garoto franzino, pele negra e cabelos crespos. Um fantástico jovem negro. Único filho legítimo de uma família de sete irmãos, todos adotivos, Rodrigo se destacava entre os demais por ter um dom: desenhava como ninguém.
Era só ter um tempinho que lá estava ele a desenhar em seu caderno. Seu universo era infinito. Na lousa nos presenteava com enormes dinossauros: Tiranossauros Rex era sua especialidade, mas também criava belos Pterodátilos.
Nossa! Meu primeiro ídolo. Um verdadeiro artista e só tinha a minha idade. Éramos tenros jovens de sete anos vividos e aquele ser tão poderoso tinha o dom de materializar qualquer coisa: carros de corrida, naves, foguetes chegando a Saturno, o Pernalonga e o Godzilla.
Mas o melhor era que o Rodrigo era meu vizinho e gostava de minha companhia. Brincávamos o dia todo e sempre comíamos em minha casa. Chegava sempre faminto com sua surrada camiseta bege e almoçávamos assistindo Spectreman. Vez em quando jantávamos em sua avó.
Sempre quis ser desenhista, talvez por influência do Rodrigo, mas desenhar não é para quem quer, é dom divino.
Certa vez estávamos a brincar sobre uma enorme sete copas que nutria de sombra a frente de sua casa.
Num galho forte recoberto de folhas vivas, dominados pelo lúdico, viajávamos num helicóptero que abatia inimigos e resgatava soldados aliados, quando algo aconteceu. Olhei para o lado e meu co-piloto não mais estava; ejetara ou caíra? O que fazer?
Olhei para baixo e lá estava o Rodrigo. Contrações faciais expressavam o choro que ainda não explodira. Seu fôlego precipitara.
Comecei a descer e ele a chorar. Mãos ao ombro, choro expansivo. Sua mãe ao encontro; Rodrigo nos braços sendo carregado para o carro que pairava como samambaia na garagem fresca.
Abri os portões e esperei. O carro se foi.

Maaarciiioooo!!!, Cheguei.
Era o Rodrigo. Abri a porta com um copo de leite gelado na mão esquerda e o vi. Faixas e espumas envolviam seu tórax séquido como um ato de mumificação não completado.
- Quebrou a clavícula, disse sua mãe que o acompanhava prestativa e já quase aliviada do grande susto.
- Passe lá em casa mais tarde para vermos um filme. Mamãe passou na locadora e pegou. O herói é um príncipe que se transforma num bravo guerreiro. Ele tem uma espada e uma fera que é seu melhor amigo. Vai ter pipoca e suco de laranja também, narrou brevemente Rodrigo com os olhos ainda inchados pelo choro dolorido.
- Uau!!! Vou pedir para minha mãe, Rodrigo. Não vejo a hora de conhecer esse herói.

Amor e coragem



Olhei para o lado direito e lá estava ela.
Cabelos dourados, lisos como fios de ouro. Seus olhos grandes possuíam duas esmeraldas envoltas num ar de confiança.
Parecia dona de si apesar da pouca idade.
Tinha gestos finos e prestava profunda atenção nas palavras da professora. Vez em quando abaixava a cabeça e escrevia.
Abria seu estojo com maestria e elegância, pegava a borracha rosada e esfregava contra a folha de seu caderno.
Repetia o gesto da escrita e terminava a frase com um ponto final e um sorriso discreto de missão quase cumprida.
Eu, nada fazia, apenas a admirava e sentia calafrios abdominais quando, em devaneios, pensava em pedir-lhe algo.
“Me empresta seu apontador”, pensava.
Só pensava, não conseguia produzir sons vocais.
Engolia a seco, mexia em meu cabelo e olhava as horas de meu relógio digital que acabara de ganhar de minha mãe.
Só isso.
Olhei para o Aldimir e lá estava ele a cutucar seu colega de frente.
Parecia que nem percebia aquela princesa bem ali ao nosso lado.
Atrapalhava a professora vez em quando, sofria repreensões e continuava com seu hipercinetismo, zoando a tudo e todos.
Eu, entre uma frase ditada e outra, virava-me para apreciá-la em seu mundinho.
Um dia o Aldimir resolveu atormenta-la.
Jogava bolinhas de papel minúsculas sopradas por entre uma caneta esferográfica sem carga, uma espécie de zarabatana feita com pouca criatividade.
Acertava-lhe nas costas, no rosto, mas ela não percebia de onde vinha o ataque preciso.
“Professora, alguém está me jogando bolinhas de papel. Com essa força dói”.
“Quem é o causador dessa bagunça”, exclamou a professora Neide.
Todos calados a olhar para baixo e o Aldimir com aquele sorrisinho sarcástico no cantinho da boca fingindo escrever algo em seu caderno.
A professora virou-se para a esquerda e continuou a caminhar e narrar seu texto; o Aldimir olhou para minha princesa e continuou seu ataque.
Foram dois sopros precisos, um na bochecha e outro na orelha.
A bela menina não se deteve, começou a chorar.
Naquele instante meu coração se partiu.
Tão bela, tão singela, não faria mal a qualquer ser que respirasse, e naquele momento sofria ataques covardes sem chances de defesa.
“Quem está fazendo isso?”, interrogou enfática a professora com a mão direita suja de giz amarelo.
Silêncio.
Respirei fundo e não me contive.
“Eu sei, professora”.
Nesse instante os olhos do Aldimir se inflamaram e senti seu juramento sobre mim.
Sem medo, exclamei:
“Foi o Aldimir!”
A classe não acreditou.
Todos me olharam com um olhar de espanto, pena e resignação, pois a qualquer momento sofreria conseqüências físicas por parte do acusado.
“Vá já para a diretoria Aldimir. Você dando trabalho novamente. Mandarei chamar seus pais para uma conversa séria”.
“Não fui eu professora, é mentira”, tentava argumentar o réu.
“Vou acabar com você ainda hoje”, disse-me com ódio e veemência.
“Na saída acertaremos as contas”, completou.
Tive medo. Olhei para minha princesa e ela sorriu para mim.
Disse-me obrigado e me estendeu sua mão esquerda.
Foi meu prêmio. Havia conquistado sua confiança.
Não sei se teria vida suficiente para usufruir sua amizade, mas sentia algo inefável. Pela primeira vez na escola havia ajudado alguém e justamente minha amada.
O tempo passou, o sinal soou e a aula findou.
Todos aguardavam o confronto que se daria lá fora.
Arrumei minha mochila e saí a passos lentos. Pensava na vitória do meu time de futebol, não sei por quê. Talvez como forma de distrair a mente.
Chegando ao portão uma roda de meninos me aguardava.
O Rodrigo chegou ao meu lado e disse-me a sorrir:
“Sua mãe está te esperando ali ao lado do pipoqueiro”.
Estava salvo. Sorri e corri na direção daquele carrinho rodeado de vidros e recheado de pipoca.
Mamãe estava conversando com o senhor dono do carrinho. Me viu e me abraçou.
Ao longe vi o Aldimir indo embora com seu pai, discretamente bravo.
A batalha não ocorreu, melhor para todos.
Amanhã é outro dia.

O casulo


Sempre o via solitário, quieto, parado a olhar para lugar nenhum.
Ninguém se aproximava dele.
Ele, em seu casulo imaginário, não se permitia com ninguém.
O cotidiano escolar era muito dinâmico, muitas crianças tentando provar algo.
Interação ramificada entre centenas de células hiperativas.
Menos o Cristiano. Seu estrabismo era seu escudo.
Seu tapa-olho seu casulo.
Toda vez que eu o via no recreio ou nos intervalos de aula, lá estava a criatura ímpar com um tapa-olho de esparadrapos em seu olho direito.
Perguntei a mamãe e ela havia me dito que aquele recurso era para ativar o olho esquerdo estrábico de modo que corrigisse seu foco de visão.
“Ah”! Exclamei. “Não entendi nada”, pensei.
Senti pena. Imaginei se fosse comigo.
Olhando para mim não via nada estranho.
Sabia que tinha uma coisa chamada asma.
Isso me impedia de respirar direito, vez em quando, e quando emanava tossia muito.
Só que isso apenas ocorria em pequenos períodos do ano, tempo seco ou contato com poeira.
Mamãe controlava tudo isso em minha vida.
Mas asma não se vê externamente como um tapa-olho de esparadrapo branco.
Sobre esse fato, quando muito me lembro, enquanto criança, nunca nos aproximamos. Lembranças de interação em âmbito escolar não há.
Hoje, adultos, nos tornamos grandes amigos por encontros do destino.
A lembrar da infância é até estranho relacionar aquela criança tímida e introvertida encostada na parede em frente à quadra olhando os meninos correrem, jogarem e gritarem, com o advogado por trás dos óculos que existe hoje.
Pensava eu ser opção dele.
Ele, não sei o que pensava.

Super-Homem



Esse merece um conto só para ele: Leandro Focão.
Tinha esse nome agregado a um apelido parecido com aquele animal que vive nas regiões geladas, mas pasmem, não tinha nada a ver com tal bicho.
Mamãe e as vizinhas diziam que nascera com um probleminha na cabeça. Algo incomum que, na tenra idade, não entendia direito, uma coisa estranha chamada foco. Isso mesmo foco. Mas, o que seria foco?
Quando a criançada do bairro e da escola ouviu essa palavra, pegou na hora: Leandro Focão.
Toda vez que mamãe tentava me explicar o que era isso acabava se atrapalhando, dizia já meio sem graça antes de começar, que era uma mancha escura em algum lugar do cérebro, que é branco. Então, aquela mancha negra chamada foco, ficava dento da cabeça e deixava a pessoa diferente das demais.
E o Leandro era mesmo muito diferente. Não fisicamente, seu corpo era de certa forma, até parecido com o meu. Tínhamos a mesma altura e éramos magros, bem magros.
Mas quando brincava o Leandro era demais.
Passava todos os limites lúdicos que uma criança poderia atingir.
Quando brincávamos juntos, demorava algum tempo para que eu pudesse voltar à realidade, ao cotidiano normal e cético.
O fato mais marcante de nossa amigável trajetória foi quando naquela manhã fresca, indo para a escola de bicicleta, me encontrei com o Leandro, também indo para a escola de bicicleta, vestido com uma roupa de Super-Homem.
Sim!!! A roupa de Super-Homem que acabara de ganhar de seu pai ficara em segredo por pouquíssimo tempo e se revelava naquele instante aos meus e aos olhos de dezenas de crianças estupefatas.
Ninguém cria naquela vestimenta azul com uma longa capa vermelha, um S amarelo no peito e lá ia o Leandro pedalando velozmente para nossa escola.
Ninguém o acompanhava no pedal, parecia que a tal roupa realmente lhe trouxera super poderes.
Eu, simples mortal, o contemplava. Um pouco de inveja, mas um pouco mais de sentimento estranho, parecia meio com vergonha do ato.
Vergonha por achar aquilo atípico demais para um ambiente escolar. Ia todos os dias para a escola com uma camisa, uniforme de algodão com o nome da escola no peito, tinha três para alternar. Normalmente uma calça jeans me acompanhava, às vezes bermuda e o meu companheiro inseparável, o tênis.
Gostava de usar um único tênis até que se acabasse, era uma forma de fidelidade àquele pedaço de lona azul e com uma sola fina e flexível. Nada comparado aos “tênis equipamento” dos dias atuais.
O Leandro estava, na cabeça dele, a metros de altura sobre nós. E parecia que, para vê-lo, necessitava olhar para cima.
Foi engraçado. Pedalando, sua capa se posicionava na horizontal de seus ombros e flamulava como nossa bandeira em dias comemorativos.
Chegando a escola, nosso super-garoto contornou todo o quarteirão do prédio e todas as crianças que chegavam dos quatro cantos da cidade puderam vê-lo em ação.
Mas para espanto geral eis que, sem titubear, direcionou o guidão de sua pequena bicicleta no sentido contrário de onde vinha e se pôs de volta para casa sem olhar para trás.
Ele não entrou, faltou à aula. Mas nos mostrou o que é ser criança.
Havia comprometimento consigo naquele ato pulsante.
Sabia que não entraria com aquela vestimenta e não forçou a barra.
Seus pais, com certeza, sabiam da proeza e o apoiaram.
Sem dúvida, um dos dias mais lúdicos do ano, feito por um jovem galhofeiro amigo meu.

Saudade da caneta



A segunda série do ensino fundamental foi para mim como uma grande emancipação cognitiva.
Aperfeiçoei a leitura, aprendi decorando as tabuadas do número um ao nove, e até hoje ainda me confundo quando tenho que calcular sete vezes oito.
Sete vezes oito, oito vezes seis, tudo isso, talvez por ter decorado, foge de minha concepção aritmética.
Mas a leitura! A literatura brasileira de Monteiro Lobato, a Série Vaga-Lume e tantos outros contos e estórias soam presentes em minhas lembranças.
Sempre me lembro com saudade daquelas manhãs em que a professora Lucí ditava frases ou expunha suas narrativas utópicas.
Lembro-me que, enquanto narrava, o frescor da manhã e o canto dos passarinhos teciam a paisagem emoldurada em meus devaneios infantis.
Se há uma palavra que ilustra bem minha infância escolar, ela se denomina saudade.
Saudade de como evoluía e sabia disso.
Saudade da facilidade que tinha em unir letras e formar palavras, em unir palavras e formar frases, em unir frases e gerar composições de pequenos textos. Tudo era meticuloso e belo.
Quando a tia Lucí dizia sorrindo:
“Na outra linha, parágrafo, letra maiúscula”.
Sentia um prazer inebriante, indizível. Algo novo ia ser construído naquele momento, naquele curto espaço de tempo faríamos, todos juntos, algo prestes a se tornar matéria, sairia de uma oração ditada e se tornaria documento em nossos cadernos pautados, pronto a ser lido a qualquer tempo futuro.
Nostalgia melancólica antagônica a efemeridade, ainda hoje presente em minhas retinas fatigadas.
Deixava de lado o lápis número dois e partia a todo vapor para a caneta esferográfica azul.
Não gostava da Kilométrica e nem da Faber Castel, deixava-me com a letra feia. Sempre e até hoje prefiro a básica Bic.
A caneta para mim foi a espada da alforria.
O lápis representava o que a fralda representa para uma criança de seis anos.
Era hora de largar, deixar o lápis para trás na hora dos textos, me serviria apenas para fazer contas, nada mais. Afinal já tinha longos oito anos de idade.
Para escrever palavras queria a caneta.
Meu pai e minha mãe só escreviam palavras com caneta. Por que não eu?

* * *

Hoje, adulto, adoro escrever com lápis.
O barulho do grafite roçando o papel me da prazer a base de serotonina.
Sinto bem estar e sempre me pego com um lápis na mão direita produzindo algo.
Nova fase ainda passo. Agora utilizo um teclado gélido para produzir textos e trabalhos.
Ação tecnológica em nossas vidas.
Sou de uma geração que transita entre o arcaico e o novel, que reluta diante dos gigabytes, mas que não pode abrir mão das evoluções humanas.
“O passado é uma roupa que não nos serve mais”, disse uma vez o cantor-poeta, todavia saboreemos nostalgicamente tudo, tudo o que vivenciamos, pois ainda somos os mesmos e vivemos...

Bicicleta e escola, uma lembrança que não sai do coração






Se há um objeto ou coisa, desde minha iniciação escolar até minha ida para outra cidade, foi minha companheira bicicleta.
Não há como falar da escola sem citá-la várias vezes.

Que eu me lembre, foram raros os dias em que me desloquei de outra forma de casa para a escola e de casa para o mundo no qual tinha contato.
A bicicleta era o meu objeto mais valioso.
Aliás, as bicicletas, pois foram várias.
A primeira veio aos seis anos, dias depois de aprender a pedalar em frente à casa de minha prima Érica.
Ela, a priminha mais velha, me enganou, literalmente.
Lembro quando sorrindo me disse:
- Vai pedalando que eu seguro a garupa. Assim te dou equilíbrio.
Fui.
Não olhei para trás. Aquele vento fresco soprando no meu rosto foi uma sensação inebriante.
A noite estava quente e as crianças brincavam na rua pacata e morna.
De repente escutei um grito lá atrás:
- Marciooo!
Era a Érica.
Parei a bicicleta sem usar os freios, usei as pernas e as solas do tênis, e olhei para trás cambaleante.
Minha prima de nove anos estava no mesmo lugar em que disse aquelas palavras:
"...que ia me segurar, equilíbrio e coisa e tal".
Retornei o guidão em direção ao ponto de partida e voltei concentrado pedalando num cambalear intrépido.
A sensação de liberdade era enorme.
- Andar de bicicleta é isso, ela afirmava com as mãos a cintura.
- Agora é só pedir para a sua mãe comprar uma, completou
- Quero uma vermelha, vamos entrar agora, disse afoito.
E assim, a liberdade se fez; não havia mais distâncias para mim e minha companheira vermelha.
Éramos um e éramos únicos.
Onde eu estava facilmente estava ela.
Na escola todos os meninos iam de bicicleta.
As meninas não. Estranho lembrar isso.
Elas iam caminhando em pequenos grupos ou eram entregues pelos seus respectivos pais.
Nós, meninos, achávamos tudo isso normal.
Menina de bicicleta seria engraçado. Até havia umas na bicicletaria para comprar, tinham uma cestinha de metal acoplada ao guidão e eram sempre rosa ou brancas.
A minha, com o tempo, se tornou uma BMX também vermelha.
Estava na quarta série quando ganhei essa. Fui com ela até a oitava série.
Saudade daquela BMX, quantas peripécias, quantos saltos, quantas empinadas na avenida principal, manobras na pista de motocross na prainha e quantas raladas homéricas no asfalto quente.
Tudo isso é motivo de orgulho para mim.
Até hoje adoro bicicleta.
Adoro montain-bike e tudo o que é off-road em duas rodas me atrai.
Na escola, dezenas de bicicletas iguais a minha se amontoavam próximo ao laboratório desativado.
Era o local delas.
Na saída, cada um com a sua desenvolvendo manobras e, vez em quando, uma queda espetacular para os risos da galera.
Bicicleta e escola, uma lembrança que não sai do coração.

Lembrança de família






Sou oito anos e meio mais velho que meu irmão Eduardo.

E no período escolar oito anos são muita coisa.
Na vida somam-se duas copas do mundo e duas olimpíadas a mais, lembranças de grandes jogos lá no fundo de meus olhos.
Por conta desse espaço de tempo não tivemos muito contato no ambiente escolar, infelizmente.

Não temos estórias e histórias para relembrarmos juntos e nos deliciarmos de saudade.
Fica uma enorme lacuna em meus pensamentos, em minhas memórias.
Esforço-me para lembrar algo relevante, aquele fato, aquele dia...

Isso nunca aconteceu.
Quando estava a sair do colégio no qual passei toda a infância e que terminava com a oitava série, lá estava ele, uma bela criança de cabelos negros e encaracolados a entrar no espaço em que se respira conhecimento.
Sei, por intermédio de minha mãe, que ele teve muitas dificuldades no seu aprendizado fundamental.
Não sabíamos o que poderia ser. Não tínhamos conhecimento fisiológico e pedagógico para avaliarmos e darmos algum parecer eficaz.
Para mim, poderia ser preguiça de aprender, afinal tudo era tão fácil.
Ler e escrever eram coisas simples na minha concepção e sempre o critiquei por isso.
Tínhamos muitas desavenças, natural de irmãos, um criança e outro pré-adolescente. Pobre mamãe que arbitrava todas as confusões geradas por nós.
Em uma de nossas batalhas egocêntricas decidimos não nos falarmos mais. E, para não darmos o braço a torcer, mantivemos a palavra por longo período.
Mamãe já não agüentava mais aquela situação.

Um lar silencioso, a falta do amigo irmão. Isso era recíproco.
Solução em curto prazo: O que fazer???
Fomos os dois ao psicólogo da escola, um em dia após o outro.
O Eduardo foi primeiro. Nove anos vividos. Expressou-se por meio de desenhos ministrados pelo psicólogo. Boa intervenção.
Eu adolescente-mestre me via sempre dono da situação.

Fui relutando, mas durante a sessão me entreguei na busca da solução para aquela família dividida.
O psicólogo começou a falar sobre a falta que eu fazia na vida de meu irmão.
Como ele se espelhava em mim, suas atitudes e como gostaria que fossemos amigos.
Mostrou-me os desenhos que ele fizera e todos estavam expressando “vazio emocional”, nas palavras do psicólogo.
Chorei, não me contive.
- Como sou idiota, pensei a soluçar e sentindo as lágrimas quentes em minha face juvenil.
- Desculpe, disse ao homem.
- Não é a mim que você tem que se desculpar. Seu irmão é criança, é diferente de ti, não o cobre por atitudes individuais. Tente entende-lo.
- Cada pessoa é um universo a ser percorrido.
- Aproxime-se dele e o faça feliz, completou.

Chegando em casa, ainda olhos vermelhos, o encarei de frente.

Há tempos não fazia isso.
Sorri. Ele se assustou, abaixou a cabeça e erguendo-a impávido sorriu para mim também.
Confraternizamos-nos por alguns minutos eternos e, naquele dia, meu irmão me propôs um acordo: não mais brigaríamos, conversaríamos.
Achei uma atitude extremamente adulta para uma criança de nove anos.

Eu oito anos mais velho não antecipei essa iniciativa de conciliação.
Houve muitas outras brigas e desavenças depois, todavia sem violência e humilhações.
Somos mais que irmãos, somos grandes amigos, cada um respeitando a individualidade do outro. Cada um interagindo com o outro dentro de um fraterno respeito.

Brasil, um sonho intenso



A consideração que tenho pelo Hino Nacional Brasileiro é inefável, indescritível.
Mas não foi um sentimento emanado abruptamente como um jorro, como um vulcão que explode e expele sua lava em questão de minutos.
Foi um sentimento lapidado como se lapida um diamante, um rubi.
Foi gerado como se gera uma árvore.
E essa semente foi plantada pela professora Regina. Não de uma forma amigável como o leitor deve estar pensando, todavia impositiva, ferrenha, mas que surtiu efeito avassalador por uma questão moral, inteiramente moral.
Minha professora de Artes se tornava uma maestrina quando regia com suas delicadas mãos de dedos longos e finos sempre envoltos por anéis, vários anéis, o brado retumbante desse povo heróico.
Meados dos anos oitenta, século vinte, final de ditadura militar em nosso país.
Resquícios quartelescos e educação positivista prorrogavam os métodos de ensino nas escolas do Estado.
Havia Educação Moral e Cívica e Organização Social-Político Brasileira como matérias obrigatórias em nossos currículos de sexta e oitava séries respectivamente.
Mas, ao adentrar no mundo ginasial, não havia na quinta série nada parecido com as aulas de artes da professora Regina.
Soava o sinal, todos de pé, a professora entrava; olhar altivo.
Diário de classe, apagador e gises eram suas armas.
Nós, enfileirados, posicionávamos feito postes rígidos.
Postes humanos éramos nós!
- Bom dia pessoas! Dizia ela com seriedade e cumplicidade.
- Bom dia professora Regina! Dizíamos em uníssono.
Mãos seguras atrás dos quadris e lá íamos respirar profundamente para inicio da aula-cerimônia. - Um, dois, três...”Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”
Nossa, era uma tensão.
Não podíamos errar jamais, seria uma afronta ao civismo.
Nós com dez anos de idade errando o Hino Nacional seriamos caso de julgamento sumário. Meninos sem nação, seria nossa pena taxativa.
E aí vinha a prova, a professora Regina apontava seu longo indicador para um de nós para que continuássemos em alguma estrofe seqüencial.
Quando alguém vacilava a continuação ou não continuava o canto o olhar intempestivo da professora feria o cerne do “sem nação” de tal maneira que este se sentia pífio, mínimo em relação aos outros e ao país.
E logo em seguida vinha a condenação: escrever cinco vezes a letra do Hino Nacional Brasileiro no caderno pautado de artes. Aliás, o pautado só servia para isso, já que o de desenho possuía outros fins.
Numa bela manhã nublada e quente prestes a cair uma estrondosa tempestade de verão, ouvindo os trovões ao horizonte a professora apontou para mim; justamente naquela parte: “Brasil um sonho intenso, um raio vivido de amor e de esperança a terra desce...”
Justamente eu que sempre confundia esse inicio com a segunda parte: “Brasil de amor eterno seja símbolo, o lábaro que ostentas estrelado.”
Foi o caos em minha mente. Fragmentos do Hino vieram e se foram e me perdi completamente. Gaguejei, tremi, cambaleei.
- Marcio, você até hoje não decorou nosso Hino? Que espécie de cidadão brasileiro é você? Aonde está o seu civismo? É por isso que estamos aonde estamos!
- Na Espanha todas as crianças sabem de cor o seu Hino Nacional.
Eu que nunca havia ido à Espanha, pensei, naquele momento, que nossos hinos eram iguais.
- Você vai escrever a letra do Hino com a referência do compositor e do letrista cinco vezes em seu caderno de Artes. E é para a próxima aula.
Fatiguei na hora descendo os ombros e sentido o preço de não ser nacionalista.
Mas eu era, adorava a Seleção de Futebol, adora ver o Nelson Piquet aos domingos de manhã e tinha torcido muito para a Seleção de Vôlei nas Olimpíadas de Los Angeles.
O Hino Nacional é uma composição muito difícil e, como criança é claro que poderia titubear por um segundo em alguma frase.
Muitas palavras que o constituem nunca havia lido em nenhum texto dos livros que tivera em mãos.
Nos dias que se sucederam ao fato expositivo em que a classe inteira ficou sabendo que eu não era nacionalista passei parte de minhas tardes a escrever a letra do nosso querido Hino Nacional. Decorei-o de tal forma que ainda hoje canto-o com vigor e cabeça erguida todas a suas estrofes.
Lembrança da professora Regina.

Cadê o título?



Lembro-me nitidamente, como se fosse há dias atrás. Porém, mais de duas décadas se passaram e, hoje, aquele jovem franzino, sedento por conhecimento se tornou professor, o educador que redige estas linhas.
Manhã ensolarada de outono, eu e minha bicicleta indo à escola e na cabeça um pensamento: “Como será o dia hoje?”
“O que farei, o que produzirei, o que vivenciarei?” Essas eram minhas auto-indagações, minhas aflições infantis.
Haveria batalhas, confrontos com os alunos, desavenças com os professores? Ou seria um dia de trégua pedagógica, aprendizado, ensino, brincadeiras e paz?
Na sala, primeira aula, eu e a sexta série, sentados aguardando a professora para nos levantarmos e darmos bom dia em uníssono. Resquícios da velha ditadura que já ia tarde.
Todos a postos, primeira tarefa, construir uma redação ou um pequeno conto sobre algo que não me lembro agora.
Caneta e caderno prontos a construir algo, ansiedade e pensamentos desconexos tentando se conectar com a folha pautada e minha caneta esferográfica azul.
Então, num turbilhão, comecei a redigir as idéias. Produzi, criei e gostei. E, no afã de mostrar o texto a professora esqueci o título da estória.
A professora prontamente acusou o esquecimento, tratou-o como um erro e leu rabiscando de vermelho minhas frases, meus verbos e meus adjetivos.
Essas correções eram terríveis, destruía meus pensamentos escritos, minhas estórias infantis. Não queria escrever mais nada depois disso.
Hoje, como docente das habilidades físicas, muito prático, por vezes teórico, procuro não repetir pedagogias ultrapassadas. Pedagogias que censuram nosso ímpeto criativo.
Procuro dar subsídios, incentivar a leitura, criar novidades. Sei que só assim desenvolveremos nosso vocabulário, nosso discernimento para a vida toda.
Essas lembranças nos fazem refletir e buscar novos caminhos, novas formas de ensino-aprendizagem, novas relações entre professor e alunos.
Novos tempos, novas metodologias...

Usar a voz



Quando uma criança é exposta em sala de aula ficam seqüelas que perduram por toda a vida. Sempre tive muito receio de falar em público, de apresentar seminários, de fazer demonstrações nos trabalhos de Física Mecânica.
Parece que, à medida que o receio aumenta a exposição também aumenta. É um fato relativamente proporcional na vida do estudante tímido.
Em sala, a interação proposta pelo professor junto aos pupilos é quase sempre entendida como alvo pelos jovens, uma indagação é sinônimo de punição e não de interação, e assim, seguem sôfregos e contundentes. Combatentes do anti-ensino, voluntariosos na campanha.
Essa timidez, analizando-a agora, nunca teve sentido em minha vida estudantil, pois era um aluno comunicativo com meus companheiros de sala, brincava a tarde inteira na rua, nos campinhos de futebol e sempre estava liderando algum grupinho de crianças com o intuito de brincar de algo.
Mas na escola, diante das professoras (no ensino fundamental sempre tive mulheres como professoras, fato curioso e só agora me toquei) ficava estático, inerte quando necessitava me expor, explanar algo relevante e didático.
Por que será?
Hoje como professor percebo a mesma timidez nos alunos hipercinéticos, aqueles que levantam e falam o tempo inteiro. Aparecem mais que o professor durante toda a aula, chamam a atenção para si e são os brincalhões da turminha.
Mas é só aplicar um seminário, uma explanação e lá vão eles a esfregar as mãos, gaguejar e ler a fala o tempo inteiro.
Por que será?
Alunos discernidos, crianças competentes, futuro promissor, notas altas nas provas escritas, alunos medianos, notas medianas, alunos coladores, notas quase medianas, alunos recuperadores, alunos vãos, chamadas orais. Todos estão no mesmo barquinho quando o assunto é exposição.
Exposição simples: “Olha, o seminário é sobre a miscigenação do povo brasileiro. O grupo Um falará dos Índios, o grupo Dois falará dos Brancos, o Três dos Negros e o grupo Quatro falará dos Imigrantes. Abordem o texto e cada um fale um pouquinho sobre nossas raças. Ok!”
Nossa, é um colapso no cotidiano extra-escolar deles. Se atrapalham, não conseguem se organizar em grupos, um sempre faz mais que outros, lêem e gaguejam sem parar.
Na faculdade a coisa não muda. Parece um pesadelo repetitivo na vida do discente.
Época de Trabalho de Conclusão de Curso: estresse e choro. Pesquisas inacabadas, sem sentido, sem conclusão lógica. Lembro-me que a Tininha, aluna exemplar do Curso de Educação Física, futura profissional promissora, aluna nota dez, apresentou seu TCC aos prantos, soluçando muito. Foi uma emoção tediosa para quem assistiu.
Por que somos assim quando o assunto é falar em público?
Qual o bloqueio, qual o receio, qual o medo avassalador que nos congela e nos acua?
Somos fortes, somos preparados para brigar por nossos direitos, somos falantes quando o assunto é o capítulo anterior da novela, quando o assunto são as CPIs do Congresso Nacional. O brasileiro sabe de tudo um pouco e todo mundo opina sobre tudo.
Então?
Qual é a nossa culpa de falar um assunto pertinente em público, seja para conhecidos ou desconhecidos?
Ninguém sabe.
Mas sabemos que o período escolar é a época do plantio. Semear para colher é provérbio bíblico e nos conduz ao futuro contemplativo.
“O hoje é o amanhã que tanto nos preocupava ontem”, disse certa vez o anônimo. Façamos dele nossa casa, nosso caminho e vivamos ativamente falando e expondo.
O Professor é e sempre será formador de opiniões. Façamos jus a esse privilégio.
Interação recíproca com a sala pode ser a solução?
Todos participando ativamente. Todos falando sobre os assuntos abordados, todos se interagindo como um grande teatro participativo. Atores e platéia num só espetáculo. Interação mútua e cooperativa.
Algo deve ser pensado e feito. Façamos das nossas crianças grandes formadores de opinião, conclusivas e expansivas, sem medo nem receio de usar a voz.

Chimique *



Final do Ensino Médio, mais uma etapa superada. Dificuldades em química e uma real possibilidade de retenção.
Estudos redobrados naquela fatídica (para mim) matéria. Ah, quando me recordo de química surgem calafrios horrorosos, todavia não sei se os calafrios são para os “elementos e ligações químicas” ou para a professora que tentava lecionar aquela matéria obscura para minha inteligência.
Tudo o que ela dizia não penetrava em minha mente; tudo o que ela explanava não se materializava em meu caderno de dez matérias. Quanta dificuldade em química!
No inicio do último ano do colegial saí de minha querida, e até então única, cidade para estudar num colégio particular como forma de me preparar melhor para o vestibular que se aproximava cada dia mais veloz.
Ao chegar do interior para um interior um pouco maior me senti como nos filmes, quando o jovem deixa sua família na pequenina cidade e parte para a capital em busca de uma vida melhor. A “capital”, no caso, é Franca, interior nordeste do estado.
Eu, no alto de meus dezessete anos, me sentido um adulto-novel, encarei mais essa situação inédita e prazerosa. Conhecer pessoas, novos amigos, novas avenidas e novas vitrines.
O colégio conceituado me traria todo beneficio que necessitava para desenvolver meus conhecimentos acerca das matérias potenciais para um bom vestibular da Unesp.
Mas na hora que me vi diante da química tive uma sensação de desconforto maior do que podia sentir e imaginar.
Percebi, só naquele momento, que minha antiga professora de química me ludibriara e eu a ela, todo o tempo, pois não sabia nada, nada. Aquilo na lousa eram hieróglifos egípcios e eu um estrangeiro numa terra distante.
A atual professora tinha uma concepção que deveríamos saber mais do que ela. Não aceitava voltar o conteúdo para tirar dúvidas, nem respondia perguntas tecnicamente simples (para ela, é claro).
Pensava eu que, estudando em casa, recuperaria o tempo perdido, todavia não consegui. Dificuldade tamanha na interação com os elementos químicos.
Decorara, há tempos atrás, grande parte da tabela periódica, pensara que isso fosse tudo, mas era muito pouco.
O sofrimento foi extenso, exatos três bimestres e meio. Foi aí que decidi voltar, terminar meus estudos na escola de minha pequena cidade e só então prestar o vestibular para qualquer coisa. Naquelas alturas me preocupava mais em passar de ano do que seguir alguma carreira. Que coisa estranha!
Voltei e passei, sim!
O vestibular que seria arquitetura se tornou medicina veterinária. Estava perdido e sem orientação profissional, então, escolhi qualquer coisa.
Passei em administração de empresas, abandonei no terceiro ano e hoje sou professor de educação física do Estado de São Paulo; mas penso mesmo é em escrever livros (romances e contos). Uma vida e muitos trajetos.

* Em Francês: Química

Narrativa descritiva



Esse livro começou quando, naquela manhã iniciando o curso de formação de professores, a Mestre Rosangela nos instigou a buscar reminiscências do nosso passado escolar.
Então, de súbito pensar, uma avalanche de fatos desencadearam uma vontade imensa de retratar com palavras minha infância na Escola Maria Peralta Cunha, na época Escola Estadual de Primeiro Grau.
Mas, o primeiro fato, a primeira lembrança com cheiro nostálgico, veio de uma recordação quando tinha dezessete anos e acabara de voltar de Franca no final do terceiro bimestre, para o colégio EEPG Dr Willian Amin.
O ano era mil novecentos e noventa. Ensino noturno (não havia vagas para transferência no diurno), jovens semi-adultos e as experiências inéditas com a vida, surgindo.
Tudo dentro de um contexto tecnicamente normal para um jovem de uma pequena cidade do interior paulista.
Havia uma ânsia de passar de ano, acabar o segundo grau e irmos todos viajar para Ubatuba, litoral norte do nosso estado na busca de prazer, divertimento e alegrias longe dos olhares paternos.
Mas, vamos aos fatos.
Uma história que conto até hoje, sempre. Esteja onde estiver nunca a esqueço tamanha sua força. Algo que me impele verbalmente a narrar e admiro os olhares dos ouvintes quando a ouvem produzindo gestos negativos com a cabeça e um leve sorriso labial.
A professora de língua portuguesa e gramática, dona de si e de seus saberes, adentrou a sala de aula toda imponente e a marchar num ritmo lento e pausado a olhar para sua mesa.
Não disse: Boa noite alunos.
Também não dissemos: Boa noite professora.
Fora uma permuta, de certa forma, compreendida por ambos os lados.
Após a chamada de presença, vamos trabalhar.
Dirigiu-se a lousa verde-escura e pôs-se a escrever com giz amarelo um tema de redação para aquele momento calmo e sereno, numa noite fresca e estrelada.
Eu sentava à frente do Henrique, um gênio nos cálculos matemáticos e aprendiz de eletrônica na oficina de seu pai.
Henrique se tornou meu amigo logo de cara, o que para qualquer ser humano era inédito, já que além de inteligente, Henrique era um tremendo misantropo, tímido e impar.
Mas o via como uma figura dócil e incompreendida.
As pessoas daquela sala não se aproximavam dele e vice-versa. Tudo o que ele fazia era estranho para a garotada.
Metade da sala só queria saber de futebol e a outra metade de bicicleta.
Alguns, mais velhos, já possuíam habilitação para dirigir e esses só falavam de som automotivo e das meninas que conseguiam conquistar. Por causa dos carros, é claro.
As meninas iam maquiadas e gostavam de namorar na entrada do colégio antes do sinal soar e ficavam a esperar seus namorados ao final da aula.
Vez ou outra havia envolvimento entre alguma garota e garoto da própria sala.
No terceiro colegial noventa e nove por cento da turma só pensa em relações amorosas.
O um por cento talvez fosse o Henrique, seus cálculos matemáticos e seu caderno fichário com a foto do Einstein com a língua de fora.
O Tema da redação era: Meu quarto. Isso mesmo: Meu quarto.
O que ela queria com aquilo até hoje não sei ao certo, mas, numa época em que: Pena de Morte, Derrubada do Muro de Berlim e Perestroika eram assuntos pertinentes o que a professora queria dizer com: Meu quarto!
Virei-me para trás num giro vertebral lombar e fiz um olhar incisivo para o Henrique. Ele me fez um bico gigante avançando o lábio esquerdo para frente e disse-me:
- Narrativa descritiva.
Eu ainda naquela posição pensei sorrindo naquelas composições da terceira e quarta séries que fazíamos quando crianças. Composições do tipo:
O Circo.
Exercitávamos assim:
O Circo chegou à minha cidade. O circo é bonito e colorido.
O circo tem mágico e palhaços. O Circo tem elefantes e leões.
Eu gosto de ir ao circo com a mamãe aos domingos...

E por aí ia minha imaginação lúdica a lembrar daqueles tempos ricamente pobres para a criação de um texto elaborado.
Narrativa descritiva, pensei e me virei novamente na carteira corrigindo meu corpo no espaço.
Comecei mais ou menos assim:

Eis meu quarto escuro e fechado.
Paredes sombrias expressam meu sentimento de expectativa em relação ao futuro do mundo.
O muro de Berlin agora é história e a Alemanha está unificada.
Pensamento surreal pouco tempo atrás.
Pink Floyd é presença sobre minha cama, colado na parede, na qual me recolho e que não me permite voltar ao tempo que passou.
A ansiedade que me acomete cuida de minhas frustrações e alegrias e com ela aprendi a conviver dentro de meu quarto...

Foi um pedido de socorro. Não me dei conta do que tinha escrito na época e hoje só me recordo do inicio do texto, mas sei muito bem que foi um pedido de socorro de uma criança de dezessete anos, família pobre, cidadela interiorana, a viver num cenário transformador:
Inicio da hegemonia capitalista no mundo e o rock brasileiro tomando sua forma definitiva. Ayrton Senna nos alegrando as manhãs de domingo.
A temível inflação brasileira totalmente fora de controle e o presidente Fernando Collor de Melo confiscando os saldos bancários.
A crise do álcool e o Brasil sendo eliminado pela Argentina nas oitavas-de-final da Copa do Mundo da Itália.
Serginho Groysman com seu Programa Livre nas tardes do SBT e o Corinthians buscando seu primeiro título de campeão brasileiro.
Entregamos as redações à professora com a promessa de que na próxima aula todas estariam corrigidas e comentadas por ela.
Na semana seguinte, uma semana teoricamente normal e sem intempéries escolares a professora se adentrou a sala do mesmo modo que sempre fazia.
Realizou a habitual chamada, como sempre, e começou a entregar as redações supostamente corrigidas e comentadas.
Estando a conversar com o Henrique fiquei na espera de minha nota e mais ainda do comentário.
Aí é que o improvável se materializou bem a frente de minhas retinas novéis.
Minha redação não foi entregue e fui chamado à mesa da professora.
Chegando lá fui indagado com veemência:
- Quem fez essa redação para você?
Ou melhor, de onde você copiou esse texto?
Estatelei os olhares e estralei os dedos da mão.
Como, aquela senhora tinha a audácia de me perguntar aquilo e consequentemente me acusar de plágio na frente de toda a sala.
Todos se calaram a esperar minha resposta, inclusive a professora que me olhava de baixo para cima por trás dos óculos, sentada em sua cadeira de madeira escura.
- Fui eu mesmo que fiz professora, pergunte para o Henrique. Mas se não acreditar mesmo assim, me de outro tema que faço outra.
Olhando-me aflitiva disse coisas que não me recordo e com mais uma ameaça ao final de sua verborragia escreveu o numeral 10, pequenininho, com sua caneta esferográfica vermelha ao lado do título de minha polêmica redação.
O ar livre à noite pós-aula estava mais contemplativo e tácito. Minha cabeça estava tranqüila, todavia a pensar o fato ocorrido naquela inesquecível aula de português.
Sabia que se ela achava que eu havia copiado algum texto é porque havia surpreendido a professora com minhas frases tristes.
E melhor ainda, se ela, mesmo a relutar, me deu um dez é porque o texto era de alguma forma, bom.
Voltei para casa a pé como sempre fazia. Era uma caminhada de trinta minutos e podia exercitar bem meu ato de pensar em coisas do cotidiano.
Adoro caminhar por isso, é caminhando que a gente pensa.

Naquela manhã de sábado, na Escola Toulouse, relembrei esse dia como se fosse há três dias atrás. Lembrava-me de tudo e isso me fascinou por completo.
Todavia, não conseguia materializar esse conto como eu queria e ansiava.
Produzi outros tantos e sempre deixava esse para depois.
Penso agora que finalmente consegui.

Texto final




O intuito dessa obra é de alguma forma, provocar o exercício de resgatar reminiscências ocultas ou fatos que se sucederam no período escolar e que carregamos conosco por toda a vida.
Mais ainda para aquelas crianças que hoje são os educadores, os formadores de opinião.
Pessoas que vivenciaram dezenas, centenas de situações engraçadas ou aflitivas, de exposição perante a classe ou ao colégio inteiro, o primeiro choro na escola, o primeiro contato direto com outros corpos cinéticos, as relações de amizade e confronto, os jogos acalorados, as pinturas, os desenhos com gizes coloridos no pátio, as admirações pelos objetos de outrem, as viagens de férias contadas no ano seguinte, o primeiro beijo, o segundo beijo, o terceiro...
Lembranças que causam desarranjos metabólicos em nossos corpos e nos trazem o doce prazer da nostalgia, por mais aflitiva, amorosa ou dolorosa que seja.
A infância perfeita torna-se lenda em nossa memória e parecemos seres abobalhados quando nos colocamos a narrar fatos que à nossa ótica só nós mesmos detemos o privilegio de narrar e fantasiar, fabular e historiar como o mais exímio contador de histórias.
O que me deixa inebriado é o fato de que mesmo nos colocando a narrar um acontecimento triste ou que na época causou muito descontentamento, hoje é visto como algo belo, singelo e único.
Dizer a todos:
- Isso aconteceu comigo. Ou:
- Aquilo aconteceu com meu amigo da terceira série lá pelos tempos idos...
Isso é fascinante e fascina qualquer pessoa que tenha sentimentos nobres para com a humanidade.
Enfim, todos somos seres nostálgicos.
Adoramos "aquela música" de determinada época, o futebol antigamente era "mais bonito", os políticos de antigamente eram "mais honestos", os carros tinham "requinte", as mulheres tinham "charme", os homens eram "cavalheiros", os ladrões tinham "classe" e até fumar nos filmes hollyodianos era "glamoroso".
O passado fica impregnado em nossa memória como um aroma indefectível para nosso olfato.
Penso muito em:
"O aluno que fui e o professor que sou".
De que maneira ou forma meus antigos professores me lapidaram para a profissão que escolhi?
O foi a profissão que me escolheu e hoje sou ferramenta única na mão de alunos que um dia serão futuros educadores?
Esses contos que apresento foram compilados com o intuito de resgatar a todos o direito de se lembrar.
Lembranças são heranças e ficam guardadas, dobradas limpas em gavetas de nossa mente armário.
É só abrir e pegar uma, prontinha para usar.
Deste modo começamos a exercitar essa nobre arte e descobrimos que uma lembrança nos remete a outra, um fato marcante surge diante de nossos olhares quando passamos por uma situação similar.
Visões de um passado bem vivido são como marcas em brasa e emanam diariamente em nossos pensamentos.
Por vezes, confundimo-os com devaneios.
Mas não são.
São verdades vividas, vivenciadas e passiveis de serem retratadas, bastamos usar o mecanismo de ação e iniciar os paralelos entre passado e presente para, deste modo estarmos em plena construção de um futuro coeso e ainda mais rico em situações, para que num outro futuro seqüencial possam ser outras reminiscências nunca esquecidas, todavia relembradas e utilizadas em proveito da humanidade.
Assim por diante, para sempre...

Profº Marcio R. de Medeiros, em algum lugar do passado.