quarta-feira, 3 de junho de 2009

Narrativa descritiva



Esse livro começou quando, naquela manhã iniciando o curso de formação de professores, a Mestre Rosangela nos instigou a buscar reminiscências do nosso passado escolar.
Então, de súbito pensar, uma avalanche de fatos desencadearam uma vontade imensa de retratar com palavras minha infância na Escola Maria Peralta Cunha, na época Escola Estadual de Primeiro Grau.
Mas, o primeiro fato, a primeira lembrança com cheiro nostálgico, veio de uma recordação quando tinha dezessete anos e acabara de voltar de Franca no final do terceiro bimestre, para o colégio EEPG Dr Willian Amin.
O ano era mil novecentos e noventa. Ensino noturno (não havia vagas para transferência no diurno), jovens semi-adultos e as experiências inéditas com a vida, surgindo.
Tudo dentro de um contexto tecnicamente normal para um jovem de uma pequena cidade do interior paulista.
Havia uma ânsia de passar de ano, acabar o segundo grau e irmos todos viajar para Ubatuba, litoral norte do nosso estado na busca de prazer, divertimento e alegrias longe dos olhares paternos.
Mas, vamos aos fatos.
Uma história que conto até hoje, sempre. Esteja onde estiver nunca a esqueço tamanha sua força. Algo que me impele verbalmente a narrar e admiro os olhares dos ouvintes quando a ouvem produzindo gestos negativos com a cabeça e um leve sorriso labial.
A professora de língua portuguesa e gramática, dona de si e de seus saberes, adentrou a sala de aula toda imponente e a marchar num ritmo lento e pausado a olhar para sua mesa.
Não disse: Boa noite alunos.
Também não dissemos: Boa noite professora.
Fora uma permuta, de certa forma, compreendida por ambos os lados.
Após a chamada de presença, vamos trabalhar.
Dirigiu-se a lousa verde-escura e pôs-se a escrever com giz amarelo um tema de redação para aquele momento calmo e sereno, numa noite fresca e estrelada.
Eu sentava à frente do Henrique, um gênio nos cálculos matemáticos e aprendiz de eletrônica na oficina de seu pai.
Henrique se tornou meu amigo logo de cara, o que para qualquer ser humano era inédito, já que além de inteligente, Henrique era um tremendo misantropo, tímido e impar.
Mas o via como uma figura dócil e incompreendida.
As pessoas daquela sala não se aproximavam dele e vice-versa. Tudo o que ele fazia era estranho para a garotada.
Metade da sala só queria saber de futebol e a outra metade de bicicleta.
Alguns, mais velhos, já possuíam habilitação para dirigir e esses só falavam de som automotivo e das meninas que conseguiam conquistar. Por causa dos carros, é claro.
As meninas iam maquiadas e gostavam de namorar na entrada do colégio antes do sinal soar e ficavam a esperar seus namorados ao final da aula.
Vez ou outra havia envolvimento entre alguma garota e garoto da própria sala.
No terceiro colegial noventa e nove por cento da turma só pensa em relações amorosas.
O um por cento talvez fosse o Henrique, seus cálculos matemáticos e seu caderno fichário com a foto do Einstein com a língua de fora.
O Tema da redação era: Meu quarto. Isso mesmo: Meu quarto.
O que ela queria com aquilo até hoje não sei ao certo, mas, numa época em que: Pena de Morte, Derrubada do Muro de Berlim e Perestroika eram assuntos pertinentes o que a professora queria dizer com: Meu quarto!
Virei-me para trás num giro vertebral lombar e fiz um olhar incisivo para o Henrique. Ele me fez um bico gigante avançando o lábio esquerdo para frente e disse-me:
- Narrativa descritiva.
Eu ainda naquela posição pensei sorrindo naquelas composições da terceira e quarta séries que fazíamos quando crianças. Composições do tipo:
O Circo.
Exercitávamos assim:
O Circo chegou à minha cidade. O circo é bonito e colorido.
O circo tem mágico e palhaços. O Circo tem elefantes e leões.
Eu gosto de ir ao circo com a mamãe aos domingos...

E por aí ia minha imaginação lúdica a lembrar daqueles tempos ricamente pobres para a criação de um texto elaborado.
Narrativa descritiva, pensei e me virei novamente na carteira corrigindo meu corpo no espaço.
Comecei mais ou menos assim:

Eis meu quarto escuro e fechado.
Paredes sombrias expressam meu sentimento de expectativa em relação ao futuro do mundo.
O muro de Berlin agora é história e a Alemanha está unificada.
Pensamento surreal pouco tempo atrás.
Pink Floyd é presença sobre minha cama, colado na parede, na qual me recolho e que não me permite voltar ao tempo que passou.
A ansiedade que me acomete cuida de minhas frustrações e alegrias e com ela aprendi a conviver dentro de meu quarto...

Foi um pedido de socorro. Não me dei conta do que tinha escrito na época e hoje só me recordo do inicio do texto, mas sei muito bem que foi um pedido de socorro de uma criança de dezessete anos, família pobre, cidadela interiorana, a viver num cenário transformador:
Inicio da hegemonia capitalista no mundo e o rock brasileiro tomando sua forma definitiva. Ayrton Senna nos alegrando as manhãs de domingo.
A temível inflação brasileira totalmente fora de controle e o presidente Fernando Collor de Melo confiscando os saldos bancários.
A crise do álcool e o Brasil sendo eliminado pela Argentina nas oitavas-de-final da Copa do Mundo da Itália.
Serginho Groysman com seu Programa Livre nas tardes do SBT e o Corinthians buscando seu primeiro título de campeão brasileiro.
Entregamos as redações à professora com a promessa de que na próxima aula todas estariam corrigidas e comentadas por ela.
Na semana seguinte, uma semana teoricamente normal e sem intempéries escolares a professora se adentrou a sala do mesmo modo que sempre fazia.
Realizou a habitual chamada, como sempre, e começou a entregar as redações supostamente corrigidas e comentadas.
Estando a conversar com o Henrique fiquei na espera de minha nota e mais ainda do comentário.
Aí é que o improvável se materializou bem a frente de minhas retinas novéis.
Minha redação não foi entregue e fui chamado à mesa da professora.
Chegando lá fui indagado com veemência:
- Quem fez essa redação para você?
Ou melhor, de onde você copiou esse texto?
Estatelei os olhares e estralei os dedos da mão.
Como, aquela senhora tinha a audácia de me perguntar aquilo e consequentemente me acusar de plágio na frente de toda a sala.
Todos se calaram a esperar minha resposta, inclusive a professora que me olhava de baixo para cima por trás dos óculos, sentada em sua cadeira de madeira escura.
- Fui eu mesmo que fiz professora, pergunte para o Henrique. Mas se não acreditar mesmo assim, me de outro tema que faço outra.
Olhando-me aflitiva disse coisas que não me recordo e com mais uma ameaça ao final de sua verborragia escreveu o numeral 10, pequenininho, com sua caneta esferográfica vermelha ao lado do título de minha polêmica redação.
O ar livre à noite pós-aula estava mais contemplativo e tácito. Minha cabeça estava tranqüila, todavia a pensar o fato ocorrido naquela inesquecível aula de português.
Sabia que se ela achava que eu havia copiado algum texto é porque havia surpreendido a professora com minhas frases tristes.
E melhor ainda, se ela, mesmo a relutar, me deu um dez é porque o texto era de alguma forma, bom.
Voltei para casa a pé como sempre fazia. Era uma caminhada de trinta minutos e podia exercitar bem meu ato de pensar em coisas do cotidiano.
Adoro caminhar por isso, é caminhando que a gente pensa.

Naquela manhã de sábado, na Escola Toulouse, relembrei esse dia como se fosse há três dias atrás. Lembrava-me de tudo e isso me fascinou por completo.
Todavia, não conseguia materializar esse conto como eu queria e ansiava.
Produzi outros tantos e sempre deixava esse para depois.
Penso agora que finalmente consegui.

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